As piramboias são animais predominantemente carnívoros, que consomem peixes, crustáceos, moluscos bivalves e insetos. — Foto: Vincent A. Vos/iNaturalist
Quarta divisão da era Paleozóica, o período Devoniano, também chamado de “era dos peixes”, ocorreu entre 416 milhões e 359,2 milhões de anos atrás. É nessa época que acontece a evolução e abundância de peixes, entre eles a piramboia (Lepidosiren paradoxa), espécie que ocorre nas bacias Amazônica e do Prata e que possui a capacidade de retirar o oxigênio do ar atmosférico e não da água.
Na verdade, peixes pulmonados já existiam nesse período e a piramboia que temos hoje na América do Sul se assemelha muito aos seus ancestrais. De acordo com os registros fósseis e estudos de paleontologia e evolução, os ancestrais das piramboias atuais viviam em locais rasos, tanto de água doce quanto de água salobra. Isso porque houve, na época, uma crescente “aridização” dos ambientes terrestres, fazendo com que muitos locais com água sofressem com secas periódicas.
Diante do cenário de déficit hídrico, o grupo de peixes ósseos o qual pertence a piramboia, chamado de Dipnoi ou Dipnóicos, em alusão à sua “dupla respiração”, precisaram explorar o ambiente terrestre à procura de locais que possuíam água.
“É aí que, provavelmente, se iniciou a transição da vida na água com a vida no ambiente terrestre, com o surgimento dos primeiros anfíbios, provavelmente evoluídos a partir de formas ancestrais de peixes pulmonados (cientificamente conhecidos por serem do grupo de peixes de ‘nadadeiras lobadas’, os sarcopterígeos)”, explica o professor da Unesp e coordenador do Laboratório de Ictiologia e Conservação de Peixes Neotropicais Domingos Garrone.
Por isso peixes pulmonados como as piramboias são tidos como os principais “modelos” para se estudar a conexão entre peixes e anfíbios e, consequentemente, a evolução dos tetrápodes.
Como ocorre a respiração em períodos de seca
Por serem peixes pulmonados, as piramboias conseguem permanecer por longos períodos fora da água. Segundo o professor e doutor em zoologia Domingos Garrone, estima-se que a piramboia que temos no Brasil consiga ficar por cerca de 6 meses na superfície, mas ainda há uma ausência de estudos mais concretos.
Já o peixe pulmonado africano (Protopterus annectens), por construir um casulo mucoso que envolve seu corpo dentro da "toca" durante o período de estivação pode ficar de 2 a 3 anos longe da água.
O pesquisador pontua que, apesar de conseguir viver sem água por um tempo, o tegumento (pele) desses animais pode sofrer com a falta d’água e acabar ressecando. É por isso que eles se enterram na lama quando os locais onde costumam habitar, como lagoas marginais e brejos, secam.
Piramboias conseguem permanecer por mais de meses fora da água — Foto: Vincent A. Vos/iNaturalist
“As entradas dessas ‘tocas’ são fechadas com argila, deixando alguns orifícios/buracos para a entrada de ar. Como as brânquias das piramboias são muito reduzidas, elas conseguem respirar ar atmosférico por meio de seus pulmões funcionais, que são muito parecidos com os pulmões de alguns vertebrados terrestres, como répteis e mamíferos. A diferença é que os pulmões da piramboia são fundidos na porção anterior, já no caso de outros animais os pulmões são mais divididos”.
Além disso, o professor Domingos Garrone explica que as piramboias também podem realizar trocas gasosas pelas brânquias e pela pele, mas que a respiração pulmonar é o meio principal utilizado para a captura de oxigênio.
Durante essa fase, as piramboias entram em um estado conhecido como “estivação”, permanecendo assim em baixa atividade metabólica.
“Algumas pessoas utilizam o termo ‘hibernação’, mas é errado porque esse termo está relacionado a um estado de baixa atividade metabólica que ocorre durante períodos muito frios. Com a piramboia é o contrário, pois o período seco costuma ser muito quente; por isso o termo correto é estivação”, pontua Domingos.
Apesar do metabolismo desses animais estar bastante reduzido, uma espécie de digestão da musculatura do corpo das piramboias fornece um pouco de energia para permitir sua sobrevivência, algo que, segundo o professor, é bastante peculiar no mundo dos peixes.
Peixe pulmonado africano (Protopterus annectens) habita países da África ocidental e central — Foto: Amadou Bahleman Farid/iNaturalist
Piramboia x mussum
Muitas pessoas confundem a piramboia com o mussum (Synbranchus marmoratus), também chamado de peixe-cobra ou enguia-d’água-doce. Entretanto, o professor Domingos reforça que eles não são parentes e pertencem até a grupos taxonômicos distantes.
Mussum (Synbranchus marmoratus) é muito confundido com a piramboia, mas espécies pertencem a grupos taxonômicos distantes — Foto: Eduardo Luis Beltrocco/iNaturalist
“A única coisa que possuem em comum é que ambos são peixes ósseos com formato do corpo alongado, que lembra uma serpente. Os mussuns, por exemplo, não possuem pulmões como as piramboias”, afirma.
Se por um lado as piramboias respiram por meio de pulmões funcionais e as brânquias quase não participam das trocas gasosas, os mussuns possuem brânquias muito funcionais.
Segundo Domingos, os mussuns possuem a capacidade de utilizar o ar da atmosfera em situações onde a água fica pobre em oxigênio dissolvido. “Isso ocorre por meio de uma especialização da sua cavidade bucal, conferindo aquilo que chamamos de respiração aérea acessória e não obrigatória como no caso das piramboias”, relata.
Estrutura corporal
As piramboias são peixes cujo formato do corpo é alongado, semelhante a uma enguia, de cor escura, quase preta. As nadadeiras peitorais e pélvicas possuem o formato alongado, na forma de filamentos, sem a presença dos raios típicos das nadadeiras da maioria dos peixes ósseos.
De acordo com Domingos, elas podem atingir até 1,5 metros de comprimento total. A nadadeira dorsal é fundida com as nadadeiras caudal e anal, formando uma única estrutura da região medial até a região posterior do seu corpo.
Alimentação
As piramboias são animais predominantemente carnívoros, consumindo uma grande variedade de itens, como peixes, crustáceos, moluscos bivalves, como mexilhões e ostras, e insetos.
As piramboias são peixes que possuem placas dentárias muito rígidas quando adultas, ingerindo boa parte dos seus alimentos, inicialmente, por sucção — Foto: Leandro Bareiro Guiñazú/iNaturalist
Os indivíduos juvenis preferem larvas de insetos aquáticos, mas à medida que se desenvolvem passam a explorar outros recursos alimentares, incluindo algas e talos de vegetais terrestres.
“As piramboias são peixes que possuem placas dentárias muito rígidas quando adultas, ingerindo boa parte dos seus alimentos, inicialmente, por sucção”, destaca o professor Domingos.
Reprodução
Domingos Garrone explica que há dados sobre piramboias da região amazônica que sugerem que a reprodução ocorre durante o período das cheias.
Espécie ocorre nas bacias Amazônica e do Prata — Foto: Arnaud Aury/iNaturalist
Nesse caso, as piramboias formam casais, com machos e fêmeas cavando uma toca com até 1,5 de profundidade, onde constroem um ninho com restos vegetais. Machos e fêmeas liberam seus gametas na água, formando os ovos. A partir de então as fêmeas deixam os machos e apenas esses passam a cuidar os ovos e, posteriormente, das formas jovens.
“Estudos indicam que os machos desenvolvem estruturas semelhantes às brânquias em suas nadadeiras pélvicas, a fim de elevar os níveis de oxigênio e absorver dióxido de carbono no interior da toca”.
Esses filamentos, segundo o pesquisador, desaparecem após o final da época de reprodução. De acordo com ele, a aparência dos jovens de piramboias se assemelha aos girinos dos anfíbios anuros, com brânquias externas.
Após cerca de sete semanas essas brânquias externas começam a regredir e, a partir de então, a respiração pulmonar passa ser a forma predominante utilizada para a realização das trocas gasosas.
Descoberta da piramboia
A piramboia foi descrita pela primeira vez a partir de dois espécimes coletados pelo naturalista austríaco Johann Natterer, durante sua expedição de 18 anos pelo Brasil (1817–1835).
Johann era pesquisador do Museu de Viena e veio junto com a arquiduquesa da Áustria, Maria Leopoldina, para coletar materiais sobre a biodiversidade brasileira, como minerais, sementes e animais.
Dentre a variedade de espécies encontradas por ele, um dos mais curiosos foi descoberto na Amazônia. Quando os dois exemplares chegaram à Áustria, em 1837, foram examinados e descritos pelo zoólogo Leopold Fitzinger, que deu o nome de Lepidosiren paradoxa, uma mistura do grego com o latim.
Lepido (“escamas”, em grego), Siren (“sereia”, em latim) e paradoxa, de paradoxal (“contraditório, em latim”) – este último em razão da dificuldade encontrada pelos cientistas ao avaliar os indivíduos coletados.
Segundo Domingos Garrone, alguns indígenas e caboclos amazônicos chamam a piramboia de “Tambaki-M’boya” e “Amoréia”. Em países como Argentina e Uruguai, a piramboia é conhecida como Pirácururú” e “Lepidosirena”.